

Terminei minha graduação em filosofia, na UERJ, em 1996. Depois disso, trabalhei por muito tempo de forma autodidata, pois ao concluir o meu bacharelado não pude prosseguir em meus estudos acadêmicos por conta do emprego num banco público. Ao seguir carreira como executivo de uma instituição financeira, cheguei a ocupar o posto de administrador do escritório do Banco em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, onde a consistência filosófica foi fundamental para compreender o mundo onde estava situado e as implicações de cada posição ocupada na configuração no jogo geopolítico mundial. Logo após minha aposentadoria, nos meados de 2019 retomei a trajetória acadêmica, começando por um curso de mestrado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e logo depois engrenei no doutorado na mesma instituição. Do fim da graduação para cá, segui a me ocupar em trabalhar os temas que desde cedo tiveram lugar na aventura do meu pensamento. Já na monografia de fim de curso, intitulada: "Caminhos para uma civilização não repressiva", se esboçava as linhas principais que passariam a dominar minha produção intelectual. Comecei por uma análise Marcuseana do conceito de mais repressão e da sua proposta de denunciar as formas de repressão da sociedade unidimensional. Essas questões acabaram por ser reorientadas sob a luz do conceito de diferença, inspiradas pelas discussões de alguns dos principais filósofos franceses que se destacaram por pensar a diferença, a desconstrução e o devir no século passado, em especial, Gilles Deleuze. Em 2011, após ter produzido uma série de textos publicados em um blog criado em 2007, os reuni em um primeiro livro, com o título de "Introduções a discursos sobremodernos". Tomando emprestado a expressão de Marc Auge, tentei caracterizar o espaço sobremoderno como o lugar dos excessos da modernidade e discorrer sobre a volatização da trocas nas tramas sociais, e sobre as formas que potencializavam a criação do novo como esse nó de tendências do virtual - uma era onde o aumento da velocidade das trocas entre os conteúdos tem como consequência uma série de transformações na realidade atual, desmaterializada, virtualizada e lançada de volta do caos de todas as possibilidades. Durante o período que estava trabalhando em Dubai, num momento em que o governo brasileiro estava empenhado na cooperação Sul-Sul, no meio da crise da dívida da União Europeia, decidi escrever a "Emergência de uma nova ordem", que era como um grito de esperança a partir do qual tentei traçar um panorama dos séculos de dominação no ocidente, das chamadas nações emergentes e mostrar como era possível um novo realinhamento dessa aldeia global, onde estes países começavam a ocupar uma posição de protagonistas. Procurando explicitar, sob o ponto de vista económico-financeiro, a questão da volatilidade, busquei atravessar a discussão por uma reflexão filosófica sempre guiada pela análise da impermanência, do virtual e da diferença. Por fim, dando sequência ao processo de reflexão filosófica publiquei "Sobredevir ou o reino da diferença excedente", onde procurei continuar a discutir a volatilidade das trocas sobremodernas, enfatizando o aumento da velocidade dessas trocas, onde o excesso produz um excedente virtual de forças cada vez mais diferindo-se de si mesma e carregadas de um potencial afirmativo. Pretendia deixar emergir o marulhar de um murmúrio liberado pelos excessos produzidos pelo moderno, que abre na perspectiva do homem nesse início de século lacunas e ausências que desvirtuam o espaço do indivíduo que fala, criando uma zona de indeterminação por onde escoam as vozes multiplicadas ilimitadamente. No retorno a academia, escrevi uma dissertação intitulada "Lugares do silêncio: a interface do sujeito larvar como campo intensivo de individuação no pensamento da diferença", na qual procurei articular a diferença na dimensão da "interface de um sujeito larvar", como um campo intensivo de individuação, para além trocas do universo simbólico que escavam a interioridade de onde o Eu fundante se apropria do lugar de onde exerce suas funções cognitivas. Tive como pano de fundo as experiências de Fernand Deligny, em especial com as crianças altistas não verbais com as quais conviveu nas montanhas de Cévennes. Seguindo a mesma linha que se manteve ao longo de toda minha produção teórica, a tese de doutorado que defendi, intitulada “A configuração do humano em Fernand Deligny: o lugar do espírito quando o sujeito não está (aí)”, quer dar conta de criticar de um modelo hegemônico que privilegia padrões eficientes de existir, na perspectiva de resistir às formas majoritárias, abrindo espaços à novas articulações dos sentidos, dos corpos, dos olhares dos movimentos e das expressões, em encontros que liberem um elemento subversivo que afirma sempre uma diferença. Ao longo da tese procuramos estabelecer a oposição entre um tipo de padrão que foi desenvolvido através de uma longa história de experimentações de sujeitos e da função simbólica e um tipo de humanidade que está à margem das estruturas da cultura e da linguagem. A partir dessa oposição formulamos a principal hipótese da tese que é a de que existe uma diferença ontológica entre o conceito de espírito e o conceito de sujeito. Essa distinção inicial se desdobra em outros tipos de oposição que situam, de um lado, o fazer intencional, e de outro, o agir para nada; de um lado a memória étnica, que é a memória do aprendizado, e de outro, a memória específica, que é a memória da espécie; de um lado a inteligência discursiva que se caracteriza pela utilização e intermediação dos símbolos e representações, e de outro, a inteligência espacial, sensoriomotora e prática. Tais distinções corroboram uma oposição fundamental, pois o que teríamos de um lado é uma relação mediada pelas estruturas simbólicas, e de outro teríamos um deslizamento direto ativado por cada coisa no espaço, como um desnudamento no humano dos traços de cultura e da influência da linguagem, onde essa relação direta libera seu estado natural. Assim o agir do espírito estaria ligado não a razões ou crenças, mas sim a uma reação instintiva aos estímulos do meio, desvelando uma dimensão impessoal do humano que não se confunde com as trocas do universo simbólico que escava uma interioridade de onde o sujeito se apropria do lugar em que exerce suas funções cognitivas. Com isso, encerro um ciclo marcado pelo questionamento das formas identitárias do mesmo e pelo desejo de alcançar um pensamento que se abra a diferença, ao devir, as potências virtuais e ao caos de todas as possibilidades, transformado a partir da consistência de uma experimentação e de um mergulho no campo intensivo das forças que se relacionam no máximo de sua energia potencial, quando então todas as transformações são possíveis e temos diante de nós uma multiplicidade de mundos, mundos sempre em profusão, como um jorro ininterrupto de uma imprevisível novidade.